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O que o caso do Jaguar tem de diferente dos outros casos de embriaguez ao volante?

Por Marcia Pontes, colunista do Notícias Vale do Itajaí

Desde que Evanio Prestini foi pronunciado pelo juizado da Comarca de Gaspar para ir a júri popular e aguardar preso até a data do julgamento pela acusação de duplo homicídio com dolo eventual (assumir o risco de matar) e três tentativas de homicídio também por dolo eventual vêm surgindo nas redes sociais muitos questionamentos sobre porque o motorista do Jaguar continua preso e os outros motoristas embriagados que provocaram acidentes com mortes responderão a processo a liberdade. Entre questionamentos de forma educada e outros de forma agressiva contra familiares, amigos, manifestantes e até contra a imprensa que cobriu o caso do Jaguar, trazemos alguns fatos de forma imparcial e isenta que vão ajudar a compreender o que diz a lei e as decisões da Justiça nesses casos.

Entenda o que diz a lei

Para entender como funciona a cabeça e a caneta dos juízes e desembargadores quando estão diante de um caso de colisão envolvendo embriaguez e resultado morte deve-se conhecer o que diz a lei e quais são os casos previstos na lei que fazem com que um vá a júri popular e outro responda em liberdade por homicídio culposo. Há duas formas de responsabilização: pelo Código de Trânsito Brasileiro (art. 302) por praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor e pelo Código Penal (art. 121) por matar alguém. São as circunstâncias, as provas, a gravidade da conduta cometida pelo motorista que determinam na lei se ele responderá por homicídio culposo pelo CTB ou por homicídio assumindo o risco de matar pelo Código Penal.

Em 2017 veio a Lei 13.546 que alterou o artigo 302 do CTB e passou a dar o entendimento, de modo geral e para os casos não específicos, que quem mata alcoolizado no trânsito responderá, em tese, pelo crime de homicídio culposo com pena de 5 a 8 anos de reclusão (começa a cumprir em regime fechado se for condenado dentro do devido processo legal). Para penas previstas até 4 anos quem arbitrava a fiança era o delegado de polícia, mas como a Lei 13.546/17 aumentou para de 5 a 8 anos, quem passou a decidir se arbitra ou não fiança nos casos de condutores alcoolizados acusados de homicídio no trânsito foram os magistrados em audiência de custódia.

Os juízes decidem com base nas provas e na “ficha” do motorista acusado: se ele já foi condenado por outro crime de trânsito, se ele já se envolveu em outro acidente com a mesma conduta, se ele cometeu atos que levam o juiz a entender que assumiu o risco de produzir o resultado, dentre outros critérios. Se sim, esse motorista tem negado o direito à fiança e à substituição da prisão por medidas cautelares: sai da audiência de custódia direto para o presídio.

Na verdade, o que vai determinar se um motorista responderá ao processo em liberdade ou se continuará preso até a data do julgamento é a gravidade da conduta dos seus atos, o conjunto de provas, os elementos a mais que levem ao entendimento com base nas leis existentes sobre se ele teria assumido ou não o risco de matar. É isso que não é explicado à sociedade e que causa revolta, pois uma vida não vale mais do que a outra, mas o que determina se o réu responderá em liberdade ou não é se ele vai responder pelo CTB ou pelo Código Penal, como no caso do motorista do Jaguar.

Por quê não teve mobilização social para os outros casos?

Muitas pessoas também questionam e até “intimam” pelas redes sociais sobre por que não houve mobilização social para outros casos de condutores que dirigiam sob o efeito de álcool e se envolveram na colisão com resultado morte. O fato é que a decisão de mobilizar ou não os parentes, os amigos e outras pessoas na sociedade deve partir da própria vítima sobrevivente e das famílias das vítimas fatais, pois manifestações por pedido de justiça os expõem ainda mais e muitos estão tão fragilizados que não querem pagar o preço de ver a dor e o sofrimento estampados publicamente. Ninguém tem o direito de expor vítimas ou familiares sem o próprio consentimento deles, nem que seja com a boa intenção de ajudar.

No caso específico da Amanda e as Suelen foram os próprios familiares e amigos que se mobilizaram, que decidiram fazer as manifestações e convidaram a maior quantidade de pessoas possível. Foi com o consentimento e com o pedido das famílias já fragilizadas e sofridas que se iniciou uma grande mobilização pelas redes sociais que contou com o apoio da sociedade: quem não podia ou preferiu não estar na escadaria da matriz ou na porta dos fóruns das comarcas de Blumenau e de Gaspar ajudava compartilhando as postagens e manifestando o seu apoio nos comentários. Diante da confirmação pelas redes sociais de que cerca de mil pessoas estariam presentes a audiência de custódia chegou a ser antecipada. A imprensa fez o seu papel de noticiar.

Para que houvesse a mesma manifestação para outros casos seria necessária a iniciativa e o pedido das próprias famílias envolvidas para que outros acatassem o chamado e se somassem à eles. Ainda que fosse uma manifestação pedindo a liberdade provisória de Evanio Prestini nada poderia ser feito sem o consentimento e a iniciativa da família dele.

Só que muitos ficam tão fragilizados e abatidos nesse momento de dor e sofrimento que preferem o anonimato: alguns sentem-se humilhados e envergonhados com a exposição pública, negam-se a dar entrevistas, preferem não falar sobre o caso e esse é um direito deles que precisa ser respeitado. Manifestações por justiça fazem eco, mobilizam a sociedade, ajudam a chamar a atenção para a matança coletiva em vias públicas e para os riscos de beber e dirigir, mas não mantém ninguém preso só por clamor popular.

O que está mantendo Evanio Prestini preso e enviado a júri popular até o momento (cabe julgar os recursos da defesa) não é o fato dele ser rico e ter dirigido o carro de luxo do pai dele como muita gente acredita, mas sim, a especificidade do caso, os indícios de materialidade e de autoria e as suas condutas tipificadas no processo conforme a lei. O entendimento do Ministério Público foi de que as consequências foram tão graves ao ponto de Evanio ser denunciado não somente pelo CTB, mas pelo Código Penal e é o conjunto de decisões dos magistrados e desembargadores que o mantém preso aguardando julgamento até que outra decisão mude isso.

Até então os juízes e desembargadores que negaram até aqui todos os pedidos de liberdade provisória do motorista do Jaguar têm se fundamentado, respectivamente, no conjunto probatório juntados ao processo, dentre eles, o vídeo que mostra o motorista do Jaguar na noite anterior em uma mesa farta de bebidas alcoólicas, o índice de alcoolemia de 0,72mg/L no teste de etilômetro (que, inclusive, foi filmado e anexado aos autos); o fato de estar dirigindo acima da velocidade 5 segundos antes e no momento da colisão, o vídeo gravado pelo motorista que vinha atrás mostrando o Jaguar ziguezagueando e invadindo ora a linha de bordo do acostamento, ora a linha que separa mão e contramão; o vídeo fornecido por uma empresa segundos antes da colisão, a quantidade de garrafas de bebidas alcoólicas  encontradas no carro e a declaração do próprio Evanio Prestini em vídeo dizendo “peguei no sono”.

A Justiça tem levado em conta em suas decisões fundamentadas também a lista de infrações de trânsito e de pontuações no prontuário de motorista de Evanio Prestini (a maioria por excesso de velocidade) e o fato de ter perdido o controle da direção do veículo que dirigia e, desgovernado, foi parar dentro de um bar às 4h50 da madrugada no dia 15 de maio de 2016. Nessa ocasião, provavelmente só não houve vítimas e mortos porque o estabelecimento estava fechado no momento. Evanio Prestini saiu do local logo após a colisão.

Não foram e não são os familiares, os amigos, as mães órfãs de Amanda e Suelen e nem os manifestantes que foram para frente do fórum pedir por justiça que estão mantendo Evanio Prestini preso: são as provas, os próprios indícios de materialidade e autoria segundo alegam juízes e desembargadores em suas decisões. As assinaturas negando pedidos de soltura têm o nome deles e não o nome de familiares, de manifestantes ou do próprio Ministério Público, que aliás, recorreria em caso de liberdade provisória, mas teria de aceitar as decisões desses juízes e desembargadores.

Uma vida vale mais que a outra?

A vida é o bem jurídico maior a ser tutelado; está no topo de todos os direitos fundamentais e nenhuma vida vale ou deveria valer mais do que a outra. O fato de  Evanio Prestini continuar preso aguardando pelo julgamento em Tribunal do Júri e outros motoristas embriagados que se envolveram em colisões com resultado morte estarem soltos é explicado pela própria legislação e pelas circunstâncias de cada caso. Deveriam estar todos presos até a data do julgamento? Sem dúvida, é isso que a sociedade, as famílias, os amigos e os internautas querem e esperam, pois não se aguenta mais tanta gente morta e ferida por conta de motoristas que dirigem depois de beber.

Chega a embrulhar o estômago quando a gente lê a notícia de que uma futura mamãe e o feto de 6 meses pagaram com a vida por conta de uma imprudência de motorista sóbrio ou não. Chega a dar um sentimento perigoso de revolta quando você lê a notícia de que um condutor embriagado dirigia em alta velocidade ou fez uma manobra precipitada ou proibida e cortou a frente de outro condutor causando a colisão que lhe ceifou a vida.

Quando quem se envolve na colisão que resulta em feridos com gravidade ou morte é um policial na ativa, de serviço ou de folga, aposentado ou reformado o sentimento de muitos chega a ser de repulsa e o maior risco que se tem nessa hora é de julgar e condenar uma corporação inteira pelos atos desastrosos de um ou mais dos membros dessa corporação. É nessa que todos se perguntam: mas, por quê o cara está solto enquanto outros estão presos?

O que incomoda a sociedade é ver que os nossos amados foram mortos por pessoas que continuam em liberdade, vivendo a vida que as vítimas de suas condutas não terão mais, pelo menos, até a data do julgamento. O que revolta a sociedade é que esses processos levam anos para serem julgados porque os acusados estão soltos e os prazos da justiça não são tão rápidos como para os réus presos.

Manifestações populares pedindo por justiça não decidem processos e sentenças: elas são iniciadas ou autorizadas pelas famílias das vítimas e servem para sensibilizar a sociedade, para sensibilizar outras vítimas, outros amigos, outros cidadãos (inclusive os que dirigem alcoolizados) para o fato de que não aguentamos mais essa matança coletiva no trânsito e que qualquer um de nós poderá ser a próxima vítima.

Não é justo que pessoas paguem com a própria vida pelos erros dos outros assim como não é justo colocar a família tanto de Evanio Wylyan Prestini quanto das próprias vítimas no banco dos réus. Cada um tem um papel nessa história: a família do réu luta a seu modo pela liberdade dele enquanto as famílias das vítimas lutam a seu modo para que ele se responsabilize e pague pelas consequências de seus atos. No final, quem decide é a Justiça e não o tribunal das redes sociais. O que explica a diferença entre alguns condutores acusados pelo mesmo crime estarem soltos enquanto outros estão presos é a forma como foram denunciados: se foi pelo CTB responderá por homicídio culposo e a liberdade provisória poderá ser concedida; se foi pelo Código Penal responderá por homicídio com dolo eventual, com pena maior e, dependendo do caso, com a liberdade provisória negada. É o que dizem as leis brasileiras que, boas ou ruins, estão aí para que os advogados de cada caso concordem, discordem e esperneiem dentro do devido processo legal.

Márcia Pontes
Especialista em Trânsito

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