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Ou a vida no trânsito vira prioridade ou continuaremos a contar mortos e feridos


Por Marcia Pontes, colunista do Notícias Vale do Itajaí

Mais uma vez começamos a semana em busca de respostas para acabar com as mortes e feridos no trânsito, afinal foram 4 mortos em 4 dias e 10 vidas perdidas só no perímetro urbano de Blumenau desde o primeiro dia de 2019. Tem sido assim de tempos em tempos: quando a quantidade de mortos aumenta buscam-se respostas, quando diminui comemora-se o voo curtinho das galinhas. Parece que a morte de um motociclista, da carona dele e de um menino de 9 anos acordou muita gente. O que ainda não conseguimos lidar é com a sazonalidade, o sobe e desce nas estatísticas ou o período de janela em que não se registra nenhuma morte no trânsito, e que logo é interrompido por mais óbitos. Sem estudos críticos sobre a acidentalidade e suas causas ficam-se sem compreender os fatores envolvidos em cada acidente, não se identificam as variáveis e não se acha a explicação. Fato: ou a segurança no trânsito é abraçada como compromisso e prioridade pessoal e coletiva ou continuaremos a reproduzir o mesmo padrão de comportamento.

Eu tenho certeza de que se juntássemos todas as pessoas realmente dispostas a fazerem algo de bom e transformador para evitar acidentes de trânsito formaríamos um grande exército. Só que essa legião do bem precisa de um bom comandante, um bom mediador e orientador em nível de políticas públicas (não é política partidária) porque bem sabemos que um exército de ovelhas guiado por um leão vence, já um exército de leões guiado por ovelhas em pouco tempo sucumbe.

O grande problema é que a sociedade e os gestores não conseguem enxergar o trânsito como um fenômeno individual e coletivo, de grande complexidade, que necessita de uma carta de navegação. Já ouviram que quando não se sabe para onde ir qualquer lugar serve, mas continua todo mundo desorientado?

Trânsito no topo das prioridades de governo

Primeira coisa: trânsito precisa ser abraçado pelas prefeituras como uma prioridade de governo que envolve todas as pastas, as gerências, secretarias e seus profissionais. O grande erro tem sido atribuir à pasta responsável pelo trânsito as responsabilidades por tratar exclusivamente do assunto. Outra falha importante: a população não é vista como uma parceira, não é informada, orientada, envolvida por estratégias eficientes e eficazes para a aprendizagem de práticas seguras em via pública. O que vemos é a população como protagonista dos acidentes de trânsito sem enxergarem que também pode ser protagonistas das ações preventivas de acidentes. Se a população não é tratada como parceira pelos gestores do trânsito ela não é responsiva aos apelos por segurança.

Tanto que se fala de educação para o trânsito nas escolas, mas esses professores precisam ser orientados e formados para trabalhar esses conteúdos com os alunos, conhecer as regras de circulação e conduta, as placas, fazer o reconhecimento e mapeamento dos riscos na área de entorno da escola e ensinar os alunos a reconhecerem os riscos na área de entorno à sua própria casa e em outros pontos pela cidade. Infelizmente, o tema trânsito sequer está no Planejamento Político Pedagógico (PPP) das escolas. As nossas crianças e suas famílias precisam aprender a fazer deslocamentos seguros.

Se você quiser encontrar professores, engenheiros, arquitetos, psicólogos, psicopedagogos e outros profissionais da força-tarefa necessária para trabalhar segurança no trânsito vai encontrá-los no quadro de servidores das prefeituras. É só organizar essa gente toda em torno de um projeto mestre comprometido com a segurança no trânsito e começar a trabalhar regendo essa orquestra. Mas, tem que ter interesse, iniciativa e conhecimento técnico para começar um projeto na área de trânsito.

A escola Pública de Trânsito tem papel relevante para atuar nesse conjunto, mas precisa ter equipe, profissionais com conhecimentos técnicos de trânsito, um Projeto Político Pedagógico forte e se articular com todas essas pastas, principalmente a SEMED. Quanto tempo faz que seu filho chegou em casa com um trabalho escolar sobre trânsito para fazerem junto com a família? Alguém lembra qual foi o último concurso cultural de trânsito para os alunos da rede pública com redação, cartazes, frases e outras formas de expressar como as crianças veem o trânsito de Blumenau e como se comportam nele? 

Vocês sabiam que existe na cidade uma empresa modelo em segurança no trânsito que tem um programa de segurança chamado Motorista Nota 10 e que premia os condutores que trabalham na empresa pelo bom exemplo no trânsito?

Educação e exemplo que vem de casa

Também não adianta empurrar a tarefa de educar as crianças para o trânsito apenas para o professor e para a escola, afinal, educação para a vida e para o trânsito vem de berço, seguindo os exemplos dos adultos que moram na mesma casa que a criança. Trânsito na escola sem a participação e o envolvimento da família não vai funcionar, pois a criança aprende na escola que deve atravessar na faixa, mas muitos adultos que cuidam dela a agarram pelo braço e saem correndo em meio aos veículos nas vias.

Soa bonitinho dizer que a criança educa o adulto para o trânsito, mas desde que o mundo é mundo são os adultos que educam a criança. Não se pode colocar no lombo de seres em formação a tarefa de educar adulto macaco velho. Crianças que aprendem sobre trânsito seguro na escola cobram atitudes responsáveis dos adultos e isso é bom, mas os adultos precisam continuar dando o exemplo para os pequenos.

É preciso conhecer os diferentes perfis de usuários do trânsito

Conhecer o perfil do usuário do trânsito é fundamental para compreender as suas características, dificuldades e as oportunidades para criar políticas públicas específicas. Por exemplo, os idosos são mais lentos, costumam ter doenças específicas e comorbidades, caminhabilidade lenta que faz a mobilidade ser reduzida, há perda de acuidade visual e auditiva que faz com que eles tenham dificuldades para discernir se um veículo está rápido ou devagar, perto ou longe, dificuldade para discernir e até ouvir o som das buzinas, dependendo do caso. Para um idoso um veículo com velocidade de até 20km/h poderá matá-lo ou desencadear um processo lento de morte devido à fragilidade do corpo em uma queda.

As crianças ainda estão em desenvolvimento biopsicossocial: têm estatura baixa, são mais distraídas, agitadas, têm um tempo menor de atenção sustentada, não têm a visão periférica completamente desenvolvida e não costumam perceber objetos e veículos vindos lateralmente. Crianças sempre acreditam que o motorista vai frear a tempo e conseguir evitar o atropelamento ou a colisão caso estejam de bicicleta.

Motoristas mais jovens costumam ser mais desafiadores, mais atirados, costumam testar pelas atitudes as figuras de autoridade e são os que mais morrem, matam, ferem no trânsito e ocupam as macas de ambulância e leitos de UTI. Como chegar nesse público numa linguagem sobre segurança no trânsito que eles entendem o suficiente para modificarem as suas práticas?

O fato é que enquanto pessoas continuam transgredindo no trânsito e vidas vão se perdendo perde-se boa parte do tempo discutindo indústria da multa, se vai abrir ou não a faixa exclusiva de ônibus para outros veículos ou perdendo tempo com projetos de lei inconstitucionais quando se poderia canalizar essa energia para somar em busca de soluções para evitar mais mortes. Corre que ainda dá tempo e precisamos muito!

Não é apenas arrecadação com multa que gera cifras bem ou mal aplicadas: precisamos saber não só o quanto se arrecada, mas o quanto se investe em ações preventivas de acidentes de trânsito em Blumenau. Quanto gastamos com resgate e socorro? O quanto isso repercute na pasta da Saúde do município, nas filas de regulação, nos biológicos, nas internações, como impacta no tratamento pós-acidente?

Trânsito envolve outra questão complexa: comportamento, pois as pessoas serão ao volante como elas são na vida, só que revelando por meio de suas práticas o lado escondido que a sociedade não conhece. Quantas pessoas você conhece que saem de casa com a preocupação sobre o que vão fazer para evitar se envolver em acidente?

Percebem a profundidade da complexidade em torno da busca de soluções? Resta saber quando começaremos a levar a proteção à vida no trânsito a sério e formar essa força tarefa porque estamos anos luz atrasados. Individual e coletivamente.

Márcia Pontes
Especialista em Trânsito

Representante do Maio Amarelo em Santa Catarina

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