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Encher as vias de obstáculos evita acidentes de trânsito?

Nos últimos dias foram registrados inúmeros acidentes graves no Vale do Itajaí. Somente em Blumenau foram três mortes numa fração de 30 dias. A colunista e especialista em trânsito Márcia Pontes fala sobre o que realmente pode evitar acidentes e salvar vidas, confira:

 

O que se sugere ultimamente é uma saída às avessas para evitar acidentes de trânsito provocados, em cerca de 90%, pelo mau comportamento dos usuários das vias. É como se encher as vias de obstáculos fosse consertar as pessoas. No setor técnico de trânsito da prefeitura duas pessoas ficam exclusivamente atendendo telefonemas e anotando pedidos e “exigências” de ondulações transversais (as chamadas lombadas físicas que nem se usa mais) e de faixas elevadas (que não é redutor de velocidade). Ignorando o Código de Trânsito Brasileiro, os manuais técnicos de Engenharia de Tráfego e as resoluções do Contran, por falta de conhecimento ou induzidos ao erro, crescem os pedidos que, se fossem atendidos, teriam feito com que as ruas da cidade ficassem mais altas do que as calçadas. A decisão de que tipo de elemento de sinalização ou redutor de velocidade será colocado com os devidos critérios e respeito às normas é absolutamente técnica.

De uma hora para outra parece que todo mundo sabe mais do que os engenheiros de tráfego e querem colocar faixas elevadas em todo canto, inclusive onde não é permitido: onde não tem calçada, onde tem curvas, onde falta visibilidade, onde há inclinações que provocariam acidentes em vez de evitar, e por aí vai. Não adianta dizer que faixa elevada não é redutor de velocidade, mas sim, um recurso para a travessia segura dos pedestres. Aliás, o pensamento de que encher as vias de obstáculos evita acidentes não tem qualquer respaldo na literatura técnica da engenharia e da segurança no trânsito. Pelo contrário, compromete a fluidez, aumenta a poluição, consome mais combustível e atrasa o trabalho das equipes de resgate e socorro que precisam de cada segundo valioso para socorrer a vida que agoniza no asfalto.

Já tivemos a oportunidade de esclarecer aqui no Notícias Vale do Itajaí que as ondulações transversais (as famosas lombadas físicas) e os tachões, tachas e tartarugas são proibidos pela legislação de trânsito quando colocadas à torto à direito na via. No caso das lombadas físicas não podem ser colocadas onde há tráfego de ônibus e nem de veículos grandes como caminhões e similares porque danificam o pavimento. Quanto mais limpas (sem obstáculos) e bem sinalizadas as vias, melhores as condições de fluidez do trânsito, o que significa menos gargalos, menos engarrafamentos, melhora nos tempos de viagem e menor consumo de combustível. Mas, para que isso funcione é necessário uma coisa que anda muito em falta por parte dos motoristas: educação.

Diminuir a velocidade vai fazer com que o tráfego flua constante se ninguém tiver a brilhante ideia de acelerar demais para chegar mais rápido no semáforo fechado ou nos pontos de lentidão. A verdade é que estão tentando conter os motoristas como se tenta conter a fuga de boiadas: colocando obstáculos por tudo. Bois, vacas, mulas e até as ovelhas fofinhas precisam ter o território delimitado por mourões, cercas de arame farpado e mata-burro. Para alguns, os motoristas precisam de obstáculos nas vias para condicionar comportamentos, de preferência, faixa elevada, que aliás, não é redutor de velocidade.

 

O culpado é sempre o outro

Mas, o que fazer então para tentar conter a pressa e o desrespeito dos motoristas? O melhor redutor de velocidade está ao alcance do pé de todo condutor e chama-se pedal de freio, mas quando não se usa tem-se que achar um culpado e esse culpado é sempre o outro. Em um cruzamento ou em uma manobra de conversão, se todos diminuíssem a velocidade, ficassem mais atentos, menos distraídos, se calculassem a distância do outro veículo, a velocidade, se tivessem visibilidade e controle sobre o próprio veículo e os próprios ímpetos as pessoas não colocariam a sua própria segurança nas mãos dos outros. Não fariam roleta russa com a própria vida.

Se as pessoas fizessem saídas suaves e seguras, sempre prevendo que o veículo da frente fosse parar sem aviso ou que alguém fosse cortar a sua frente; se dirigissem mais focadas e sem distração com celulares, ah, como se evitaria acidentes!  Se usassem a visão periférica para explorar bem os ângulos dos retrovisores quantas colisões do tipo abalroamento seriam evitadas!

Essa exigência por obstáculos nas vias sugere desespero por parte da população que não sabe mais o que fazer para pedir que os outros dirijam com mais cuidado. No trânsito estamos unidos, ligados pelo mesmo fio que tece as relações sociais em via pública. O que um faz atinge o outro e muda essas vidas para sempre. Mas, parece que as pessoas se tratam como inimigos: o eterno duelo de dedos em riste entre motoristas e motociclistas; entre eles e os pedestres e vice-versa.

Basta que se fale e se faça fiscalização para punir quem comete excessos que esses mesmos estranhos passam a se autoapoiar mutuamente. Essas infrações de trânsito que todo mundo presencia no dia a dia e que na hora reclamam do outro que as comete estão sujeitas a uma fiscalização que ninguém quer. E sabem por que? Porque reclamam do outro, mas fazem as mesmas coisas e não querem a punição como se achassem no direito de um salvo-conduto para transgredir.

 

Tudo passa pela educação

Não basta encher a cidade de obstáculos físicos se não compreendermos que a responsabilidade é individual (motoristas, pedestres, ciclistas, poder público) antes de ser coletiva. Cada pessoa age na vida e no trânsito de acordo com a sua formação, educação, respeito, tolerância, traços de personalidade, agressividade e interesses; de acordo com os valores e códigos morais, as crenças, o modo de ver o mundo e a responsabilidade. De acordo com o modo como convivem e respeitam a si próprias, aos outros e as regras sociais, as figuras de autoridade, mesmo quando não estão dirigindo. Ao dirigir, apenas potencializam e reproduzem ao volante o que são na vida.

Tudo isso vai sendo reproduzido para as demais situações no trânsito e é o que determina o quanto as pessoas estão dispostas respeitar ou a assumirem riscos. Quem transgride no trânsito sabe o que está fazendo, sabe que é errado, mas faz. Faz com dolo e com vontade. Abusa da experiência trazida com os anos de CNH e da autoconfiança. Acreditam na impunidade, colocam os seus interesses e o egoísmo acima do coletivo. Infrações como estacionar na calçada, a menos de 5 metros das esquinas, ultrapassar em local proibido, costurar no trânsito, dirigir em velocidade acima da permitida, não dar seta, sem cinto, sem proteger as crianças na cadeirinha e tantas outras são cometidas em associação com aquele sentimento de que “comigo não acontece”. Os resultados vemos diariamente nas ruas.

 

Cultura voltada a transgredir

A cultura da maioria das pessoas no trânsito parece estar voltada para transgredir, negar a transgressão e reclamar de quem fiscaliza. Fiscalização só para os outros, para mim não! Quando a infração dá errado e resulta em morte, muitas vezes, provocada pela própria pessoa, aí vira fatalidade ou vontade divina.

A quantidade de óbitos na rua Amazonas, nas demais ruas da cidade e do país deveriam pesar nas decisões de quem ainda está vivo e vai dirigir, caminhar e pedalar. O que eu aprendi com o acidente, com os ferimentos e com a morte do outro na via em que trafego todos os dias? O que isso vai mudar no meu modo de dirigir e de me comportar no trânsito?

Mudar comportamentos é difícil, mas não é impossível: basta que as pessoas queiram, e o quanto mais se demorar para isso, pior será. É mais fácil encher as ruas de obstáculos físicos e atrapalhar a vida de todo mundo do que se passar a agir com cuidado, com respeito e com educação. Então, trate-se de encher as ruas de obstáculos para dissimular o desejo de correr demais e cometer abusos onde eles não existem.  

Dirigir com cuidado e preventivamente nem todos querem. Fiscalização para coibir os abusos, nem se fala! Os técnicos? Esses são todos uns burros! Que se encha Blumenau inteira de obstáculos pelo caminho para depois reclamar dos engarrafamentos.

Pagamos diariamente o preço da falta de educação, da falta de respeito, da falta de autocuidados. Se deslocar com segurança pela cidade, cuidar e proteger a própria vida é o mínimo que se espera do ser humano, que ao fazer isso protege também aos outros.

Ou as pessoas e os gestores levam o trânsito a sério ou continuaremos a noticiar e a contar acidentes, feridos e mortos. Ou se trabalha sério para encontrar uma forma de se chegar à população e ajudá-la a tornar-se responsiva aos apelos por segurança no trânsito ou continuaremos vivendo no mundo do faz de conta e dos discursos bem elaborados para as solenidades e datas comemorativas referentes ao trânsito. Só distribuir panfletos, fazer selfie  e organizar eventos em datas específicas está provado que não adianta: fazemos isso faz tempo e não está tendo resultados. Ou levamos o trânsito a sério ou continuaremos a pagar a conta com vidas.

 

Márcia Pontes
Especialista em Trânsito

Representante do Maio Amarelo em Santa Catarina

 

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