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Quando se implora pelo óbvio no trânsito

Será que não está na hora de você motorista, fazer mais do que o óbvio no trânsito? Se proteger é ruim? Um minuto vale mais do que uma vida? Será mesmo que o alta média do número de acidentes não pode ser diminuída? Confira o artigo de Márcia Pontes e reflita:

 

Em pleno século 21 é incrível que se gaste milhões em campanhas educativas e preventivas de trânsito de todo o tipo para pedir que as pessoas façam coisas óbvias no trânsito: usar capacete, cinto de segurança, proteger as crianças na cadeirinha, não dirigir com uma mão só, de chinelos, e por aí vai. Tente pedir a uma pessoa não estacione o veículo em uma vaga preferencial quando não é deficiente e prepare-se para ouvir um sonoro “Ah, vai cuidar da sua vida.” Ultrapassagens em locais proibidos provocam colisões frontais e morte, mas isso parece não sensibilizar muitos motoristas: a desculpa é de que é a rodovia que mata quando, na verdade, é gente matando gente. Conduzir a moto sem proteção para os pés e tornozelos provoca lacerações profundas e até arrancamentos de membros, mas muitos motociclistas parecem que perderam a noção do perigo. Foi preciso que um chinelo enroscasse as tiras no acelerador para provocar o acidente e a morte de duas pessoas para que a manchete nacional começasse a fazer algumas pessoas repensarem as suas atitudes ao dirigir. Até quando viveremos implorando pelo óbvio no trânsito?

Aquilo que o Denatran queria evitar proibindo as campanhas educativas com imagens fortes de acidentes aconteceu: a anodinia, a naturalização do acidente e de suas consequências. Anodinia é a indiferença e a sensação de anestesiamento diante do sofrimento do outro, que em algum momento também será o nosso. O acidente ali na esquina é só mais um. A pessoa que perde a vida nesse acidente é só mais uma. A ficha só cai quando é nosso parente ou amigo.

Há quem diga que pelo tanto de besteiras que certos condutores fazem no trânsito morre pouco ainda. Ledo engano, meus caros usuários do trânsito! Os números assustam, embora não sensibilizem como deveriam. No ano de 2014 morreram 43 mil pessoas em acidentes de trânsito no Brasil, o equivalente ao saldo de vítimas de 15 atentados terroristas de 11 de setembro por ano; o equivalente a 605 quedas como a do avião da Chapecoense por ano, ou 180 incêndios como o da Boate Kiss, ou ainda 4 tsunamis por ano.

A gripe H1N1 levaria 532 anos para vitimar os mesmos 43 mil mortos em acidentes de trânsito no Brasil no ano de 2014. A dengue, 45 anos; a hepatite, 28 anos, a tuberculose, 13 anos. É como se caísse por dia um Boieng de viagens internacionais por dia, mas isso não choca, não sensibiliza para a necessidade de autocuidados no trânsito.

O fator escolaridade ou instrução, como queiram, até aparece como uma variável para tentar explicar porque as pessoas não compreendem ou não se mostram responsivas aos apelos para se comportarem com segurança nas vias e respeitar as leis de trânsito. Essas variáveis até têm o seu peso nas pesquisas e relatórios estatísticos, mas não são absolutas para determinar que morre mais pessoas que estudaram menos do que as estudaram mais tempo. Pesquisas de renda dos acidentados não são absolutas para demonstrar que morre mais pobre do que rico em acidentes de trânsito no Brasil.

Todos os dias tem gente rica e gente pobre morrendo no trânsito. Tem doutor e tem pé de chinelo, em um indicativo de que são os fatores relacionados a comportamento, à visão de mundo, aos traços de personalidade, aos valores de convivência, respeito para com os demais, às leis de trânsito e ao modo como valorizamos a vida e as interrelações nas vias.  

Tem-se a mania de querer comparar e copiar o que dá certo em países desenvolvidos, de plataforma cultural diferente da nossa onde impera essa praga desse “jeitinho brasileiro” para tentar resolver tudo e levar vantagem. A diferença é que aqui não temos uma plataforma cultural voltada para a segurança no trânsito e quem faz a coisa certa chega a virar motivo de piada. Tentam barrar o excesso de velocidade colocando mais redutores, quando o principal redutor está ao alcance dos pés e chama-se pedal de freio e assim não se ataca o problema na origem. São os bois e cavalos que precisam de obstáculos, mourões e cabrestos para serem contidos. Motoristas precisam mesmo é de consciência e responsabilidade, mas quando não têm….

Por aqui se faz leis já pensando nas brechas para a impunidade e é bem pelas brechas que se enveredam os recursos que resultam em arquivamentos até de infrações de trânsito, como assim bem determina e permite a mesma lei que pune para coibir infrações. Ah, essa indústria da multa que quer enriquecer em cima dos pobres motoristas que não fazem nada de errado! Para acabar com ela vale até leis inconstitucionais e campanhas públicas e eleitoreiras absurdas que induzem a população ao erro!

Para acabar com essa “indústria da multa” vale tudo, não se importando se Blumenau paga por mês R$ 37 mil à Polícia Militar até 2018 pela utilização das câmeras de videomonitoramento cujo convênio foi celebrado para punir os condutores que cometem as infrações que quando dão errado se transformam em acidentes. Só que por conta de uma lei inconstitucional assinada por muitas mãos que também se sujam de sangue cada vez que um motorista desses provoca o acidente, machuca e mata alguém, o videomonitoramento foi suspenso. Além de criar gastos para o município, mantém aberta a torneira por onde vertem esses R$ 37 mil mensais (que todos nós ajudamos a pagar) a troco de nada e que em 2018 somará R$ 200 mil em época de vacas magras para o município. 

CTB prá que? Se pudessem o revogariam, anulariam e sumiriam com ele do mapa jurídico brasileiro. Cuspir em cima e limpar a boca com as leis de trânsito já o fazem tanto os motoristas quanto os demais usuários e alguns políticos e gestores. Enquanto isso, as imagens das câmeras de videomonitoramento continuam flagrando as imprudências, os abusos, os acidentes e deixando de mãos atadas quem deveria agir para punir. Assistimos o teatro do absurdo movido a pão e circo, mais circo e mais palhaços do que pão porque é assim que todos que se preocupam com a preservação da própria vida, da vida alheia e com a segurança no trânsito se sentem.

Para quem fazemos as campanhas educativas de trânsito? Para eles ou para nós mesmos que tiramos selfies com as mãos cheias de panfletos (que sujarão ainda mais a cidade) pedindo para que façam aquilo que sabem que devem fazer?  

Infelizmente, por falta de cultura voltada para a segurança (e cultura refere-se ao modo como fazemos as coisas por aqui) e de responsabilidade para um trânsito seguro, por conta do jeitinho brasileiro na vida e nas vias, muitos só irão se conscientizar e fazer cair a ficha depois que se acidentarem ou que perderem alguém muito querido. Ou quando compreenderem que autuar um condutor que dirige de chinelos não é indústria da multa, mas sim uma forma de tentar evitar que esse chinelo enrosque nos pedais e provoque o acidente e a morte, como foi manchete nacional. 

Até quando continuaremos a implorar pelo óbvio no trânsito enquanto contamos mortos, feridos e acidentes como se fossem só mais um?

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