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Sobre motos, mortos e a sociedade dos inválidos

Um artigo de Marcia Pontes para quem anda de moto e para quem ama motociclistas. A colunista do Notícias Vale do Itajaí também trás dados do trânsito blumenauense, o que mais tira vida de quem conduz o veículo de duas rodas, comparando com outras cidades de Santa Catarina:

 

Três mortes de motociclistas em uma semana. Duas mortes em um mesmo dia. Este foi o saldo da acidentalidade em Blumenau nas últimas semanas. Acidentes com sobreviventes de gravidades diversas foram muitos. No espaço de uma semana foram dois motociclistas mortos em um trecho de retão rua Amazonas: um na altura do número 1.400 e outro na altura do número 1.700. Detalhe: a rua Amazonas entra ano e sai ano continua no topo das ruas com mais acidentes de trânsito na cidade, inclusive com colisões frontais. Também é um dos bairros em que a sinalização de trânsito é constantemente questionada. Para tentar resolver esse conjunto de problemas o novo projeto do corredor sul prevê canteiro central com proibições de conversões livres à esquerda na maior parte dos trechos. Haverá pontos específicos de retorno para o acesso às vias transversais. O projeto está em fase final de liberação de recursos pela Caixa.

Outro fato que é extremamente preocupante e para o qual venho alertando não é de hoje (e quem acompanha o meu trabalho sabe disso) é que os óbitos de motociclistas em acidentes de trânsito em Blumenau está acima da média nacional desde 1995. Outra constatação: morre mais motociclista em acidentes em Blumenau do que em Joinville, a maior cidade do estado, e do que na capital Florianópolis.

De 1999 a 2013 morreram só na cidade de Blumenau, 448 motociclistas (382 homens e 66 mulheres), conforme dados do DATA/SUS e Sistema de Informação de Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde. Em todos os anos do período a média de mortes do motociclistas em Blumenau tem sido maior do que a média nacional. A maioria com idade entre 20 e 39 anos, ou seja, no auge da idade cronológica e produtiva.

O que não falta no país são pesquisas envolvendo motociclistas e acidentes de trânsito, mas o que nenhuma dessas pesquisas explica é o impacto que tem a morte de um motociclista para a vida daqueles que ainda estão vivos e o quanto cada acidente de moto impacta para a decisão deles de se cuidarem mais no trânsito. De todas as mortes desde o início deste ano em Blumenau e até o fechamento deste artigo, 90% foram de motociclistas jovens, em pleno vigor da idade cronológica e produtiva. A maioria homens. Quantos estavam a trabalho? Por enquanto, esses dados não são coletados no município (uma pena!).

Não podemos esquecer que segundo dados da Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia (SBOT), 30% dos motociclistas acidentados tiveram contato com a moto na adolescência, antes dos 18 anos, e até na infância, e aprenderam a dirigir moto com amigos que os pais desconhecem ou com parentes. Muitos têm bicicletas e as empinam ou demonstram “habilidades” como se a magrela fosse uma moto. Adivinha qual é o sonho desses guris?

Sobre duas rodas morrem os bons e os maus; morrem os pais de família, o trabalhador, morre os “maluco”, “os doido” e os “vida loka”. Morrem também os que estão no meio termo, aqueles que viviam a vida intensamente em todos os sentidos, e no que isso se refletia no trânsito. Perdi conhecidos, perdi amigos que só conhecia do ambiente virtual, perdi a chance de conhecer os que já se foram.

Em uma pesquisa em andamento quando solicitei aos motociclistas para que definissem em uma palavra o que a moto significa para eles as respostas variaram entre “meu ganha pão”, “liberdade”, “doidera”, “vida loka”, “sonho realizado” e uma resposta insólita: “moto, se não souber usar, mata”. Mas, será que é a moto que mata mesmo? Um monte de metal com motor, cabos e fios mata? Ou seria o modo como ela é usada em função de uma série de fatores individuais como: comportamento, traços de personalidade, arroubos da juventude, crenças pessoais, modo de pensar sobre a moto, modo de agir, os ganhos sociais que cada um quer obter com a moto, o modo como se exerce os autocuidados e se respeita as leis de trânsito?

O fato é que se poderia discorrer tomos e tomos de literatura e fundamentações para tentar explicar porque tantos acidentes, feridos e mortos envolvendo veículos de duas rodas na cidade. Mas, para além das variáveis que envolvem condições socioeconômicas, culturais, psicossociais e tantas outras, está o fato a cada vez que um motociclista se fere, morre ou mata no trânsito. Isso é fenômeno mundial que se soma às características de cada lugar.

Em se tratando de causas de acidentes de trânsito não cabem especulações, elucubrações ou juízos de valor a respeito disso ou daquilo. É claro que se o cara é ou era vida loka a passagem pela terra fica mais curta. Se era do tipo adolescente sem habilitação com diversas passagens pela polícia e morreu durante uma perseguição policial a tragédia já era meio que anunciada. Mas, também morre muita gente inocente nessa história contada a duas rodas.

O cara podia ser doidão, mas era gente fina. Sim, dirão os mais próximos. O cara podia chutar na velocidade, mas era uma excelente pessoa, dirão outros. Mas, a questão não é essa: ser gente fina, gente boa ou ser um caco. Isso não serve de credencial ou de referências para quem se envolve em acidente de trânsito. O que vai definir tudo é o modo como se comporta na via pública, como dirige, como se protege, como se cuida e se importa com a responsabilidade e com as consequências de seus atos em via pública. Sem esquecer, claro, daqueles que são vítimas de condutores imprudentes e de muitos embriagados que lhes roubam a vida como fizeram com o meu amigo Fernando Tesch.

 

Motociclistas são a maioria

Até o dia em que escrevi este artigo a frota total de veículos de duas rodas em Blumenau era de 45.766 veículos (36.679 motocicletas e 9087 motonetas). A frota total de veículos automotores na cidade é de 252.305 unidades (dados até agosto de 2017).

Dos 204.191 condutores habilitados em todas as categorias, a turma da motoca faz peso: 112.999. Mais de 50% dos habilitados em todas as categorias! Somente 30.587 são mulheres; a expressa maioria de 82.412 são homens. Os dados são do Detran/SC.

Até aí nenhuma novidade, assim como demonstram as estatísticas: os homens se acidentam e se ferem com mais gravidade, e também morrem mais dentre os demais tipos de condutores. Embora tenha aumentado a quantidade de mulheres dirigindo motos, os homens ainda são a maioria. Muitos dirigem de modo mais agressivo, abusam da velocidade e das manobras. Outros fazem tudo certinho.

Cada acidente na cidade é uma pedra no sapato dos técnicos do planejamento viário na cidade. Há casos em que no mesmo dia vão ao local verificar a sinalização, as placas, a pintura de solo, outros elementos de sinalização viária e constata-se estar tudo ok. A existência de uma reta, de uma curva, de elevações no solo, de angulações mais fechadas ou mais abertas no trajeto, a questão velocidade, imperícia e condições adversas diz muito sobre os indicativos para as causas dos acidentes junto com as demais variáveis. E como sempre, tudo vai girando em círculos e em ciclos até cair nos fatores comportamento e velocidade. Para a maior parte dos casos.

Mas, a grande pergunta que não quer calar é: como colocar um freio nesses acidentes que nos encaminham para a sociedade das motos, dos mortos e dos inválidos? Como evitar que mais motociclistas jovens percam as suas vidas em via pública? Como evitar mais dor e sofrimento para si e para as suas famílias? Com tanto motociclista morrendo pelas vias da cidade, já pararam para pensar até que ponto isso afeta a produtividade e a economia local?

O fato é que, de tudo que se pense, que se tente, que se sugira, tudo passa pelo modo como esses motociclistas pensam o significado da moto, do ato de dirigir e da necessidade de autocuidados. Tudo passa pelo comportamento e por aquela enorme somatória de fatores que implicam para o acidente de trânsito.

Mas, tudo passa, também, pelo que estamos fazendo ou deixando de fazer, não só em termos de Engenharia de Tráfego, mas também em termos de fiscalização e de ações preventivas e educativas com essa garotada. E parafraseando aqui o bom lema dos bombeiros: o acidente é provocado onde a prevenção falha.

 

Márcia Pontes
Especialista em Trânsito

Representante do Maio Amarelo em Santa Catarina

 

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